Crossing the Atlantic

Categorias:Romance
Wyrm

Crossing the Atlantic


Blair estava a um quarto ao lado, preparou um ritual detalhado e mandou suas imagens caçar o que precisavam. Audrey podia sentir a ressonância da Mensageira flutuar pela casa, e aquilo não a incomodava. Estavam na mansão da praia, a que não residia na Ilha, e andava sem moradores por um longo período. Audrey estava com os braços cruzados sobre os joelhos, curvada para frente, sentada sobre um puff diante para uma janela que vislumbrava o mar. A maga parecia lidar com um gosto amargo na boca o tempo inteiro, e estava mais ansiosa que o normal. Seus olhos passeavam até o celular a todo instante, pronta para desmoronar alguma avalanche; mas se segurava… “Eu vou morrer”; “Eu deveria me matar”; “Isso nem estaria acontecendo”; “Se eu não estivesse aqui…”. Afastou a gola da camisa do pescoço e não se moveu quando o boné caiu no chão. “Não é justo…”. Respirava pela boca. “Pula… Pula…” Observou a janela com relutância “Acabe com isso. Ninguém vai conseguir te salvar e ainda morrerão… Henry ou Blair…” – É a minha maldição…– Ergueu-se e pegou o celular. “Eu te amo…” Enviou a Ladi, digitando uma segunda mensagem de despedida, mas não enviando.

Em um estado de reflexão, entre a dormência dos pensamentos e a clareza do momento, os olhos negros com um forte ponto de luz acompanhavam a mudança de cores que o tormento de Audrey gerava, ressonando como um breu que se determina a envolver e corromper, tóxico o bastante para estar vazando de dentro dela em direção a Henry. O Kitsune observava as garras afiadas do Umbral em sua direção, tentando alcançar a sua alma poderosa como garras de um condor agoniado. Os pensamentos fortes deixavam escritas sombrias pelo ar, formando símbolos de destruição que começavam a chamar pela ponta insana da Tríade.

Henry se levantou e seguiu até ela. As suas mãos pousaram sobre os ombros endurecidos, massageando-os uma única vez antes de deixá-los. Ele tirou dela o celular e o lançou para trás magistralmente no sofá. – Vem aqui. – Ele sussurrou, envolvendo-a em um abraço acolhedor. – Ninguém te disse você precisa fazer isso sozinha… Princesa selvagem…

Não relutou nenhuma das ações, Audrey apenas encheu seus olhos de lágrimas quando recebeu o abraço. – É verdade… – Encostou sua cabeça entre o ombro e o braço de Henry, os olhos perdidos nas paredes. – Acontece assim… Há grandes chances de você ou Blair não retornarem. Eu já vi isso acontecendo outras vezes. Eu conheço essa linha da trama… Eu conheço esse jogo… Não vou aguentar.  Eu deveria deixar ir… Me deixar ir… Talvez eu renasça como alguém novo… Alguém sem essa… Âncora…  – Fechou seus olhos   – Eu nunca mais precisaria me olhar e pensar em tudo o que causei.

Ele a ouviu sem interrompê-la enquanto os olhos bem abertos vislumbravam sem se preocupar com as garras ameaçando mais próximas do seu corpo. Henry escorou a cabeça à dela, confrontando o sentimento de aviso que o convidava a repeli-la. – Não há “grandes chances” de morrermos. Eu não sou um simples popstar. Eu tenho sete caudas que dizem muito sobre as minhas aventurinhas… – Ele disse com humor. – E Blair… É Blair. Se não fizermos essa missão, você não irá resolver isso nunca. Se você se matar, com sorte, você irá para a Umbra Negra como um fantasma. Encontrará a sua Sombra em um estado de fragilidade muito maior… E estará ligada a nós, precisando de ajuda desesperadamente… Enquanto sofre… Então… – Ele a acariciou nas costas. – Suicídio nunca resolve nada. Nunca. A não ser que você tenha um propósito nobre ou seja… Hm, uma metamorfa, ah?

Afastou o olhar e o fitou por um tempo, a expressão de súplica. Queria acreditar em cada palavra dele, mas o que estava em seu peito não deixava. – Minha mãe e meu irmão eram invencíveis também. – Apertou o lábio – Eu sei que eu não posso pedir que fiquem e eu vá sozinha. Mas não… Force… Entende? Não vai ter sentido. Se um de vocês se machucar sério ou não voltar, eu simplesmente não retorno também… E eu quero que me deixem para trás se isso for uma opção… Você não pode cuidar de você mesmo… E me defender. – Cruzou os braços ao redor do abdome, sem sair de perto do Kitsune. Tremia. Audrey tremia como se estivesse com os pés mergulhados em gelo. – Vocês dois me conhecem de verdade… Sabem como eu sou quebrada. – Encarou-o de novo – Estão fazendo algo… Que talvez nem dê certo. Eu posso ser assim mesmo. E mesmo assim estão tentando… – Recuou o olhar para a parede, pensativa, e depois aos olhos de Henry – Por que está fazendo isso…?

Dedos quentes se elevaram até o rosto belo da Maga, acariciando-o enquanto o seu braço fazia o cerco seguro ao redor do corpo frágil. Henry a mirou de volta, observando o semblante sofrido que fazia espelho de tantas dores. Ele esboçou um sorriso selado. A sua voz soou terna e íntima, carinhosamente sussurrada:

– Porque é uma segunda chance para mim. – Henry afastou se desviou brevemente dos olhos desesperados. – Você sabe quando você sente que pode ajudar alguém e decide não o fazer porque… Não quer? Não dei importância. Eu sabia que você tinha cruzado o meu caminho por um motivo, mas… Eu quis dar atenção… Não ouvi o chamado de Gaia para mim. Eu queria me perder com você. Afundar-me com você e passar os meus dias sem saber quem eu era. Você esteve disponível para mim e ao meu lado todas vezes que precisei… E eu me ausentei dos seus piores problemas. – Ele piscou brevemente. – Dei ênfase aos seus erros como se não enxergasse o que se passava com você. Eu não fui o melhor companheiro que você poderia ter tido… Mas eu quero ser o melhor amigo. Eu espero que isso repare a minha falta de empatia… Ou pelo menos a compense. – O sorriso dele se desenhou mais uma vez. – E você não tem ideia do poder que possuo. Você vai se surpreender.

Observou-o com a contemplação antiga, de quando o admirou e amou sem freios. Quando havia encontrado em alguém a fuga perfeita para toda sua vida e dores. Sem medir qualquer consequência, quase encontraram um fim muito rápido; ao menos ela, quando sofreu de overdose na última noite, e quase não sobreviveu. Audrey respirou devagar e concordou sem certezas: – Você não me deve nada…  Você sabe. Mas… – Fez uma pausa – Obrigada… Henry. – Desceu as mãos pelos braços dele até suas mãos tatuadas, segurando-as por um instante. – Ninguém me deve nada sobre o que eu me tornei… Eu queria ser diferente, não queria ser a princesa no castelo. Me coloquei em problemas… Agora… – Ela riu nervosa – Eu só queria voltar a ser a princesa do castelo. Eu só queria poder sentir um pouco daquela paz. A morte da minha mãe…   – Audrey passou a falar devagar.   – Eu acho que piorou meu estado porque foi como perder algo que eu ainda enxergava como porto quando eu era mais nova. Perder ela… Foi… Como se eu nunca mais fosse recuperar o sentimento daqueles dias… Onde eu estava segura. Eu espero voltar… A sentir isso de novo.

Os dedos longos de Henry envolveram os dela, como se criasse uma proteção para as mãos femininas com o seu próprio corpo. – Eu não posso te prometer que você se sentirá a mesma de antes, pois aquela Audrey morreu com o passado. Eu posso dizer que a força que te puxa para baixo sumirá e você mesma poderá organizar a sua mente para substituir os seus sentimentos. – Ele entreabriu os olhos e suspirou. Os dedos sentiam a ponta afiada de garras próximas roçando a sua pele. – Se a força não veio de dentro, ela nunca foi uma força. Quando somos atingidos por um Efeito, Audrey, cada um corresponde de uma forma. Talvez, lá no fundo, você sempre quis que tudo terminasse… – Ele se aproximou e beijou-a à fronte, demorando-se no gesto de carinho antes de olhá-la. – Quando terminarmos, eu tenho certeza que você poderá sentir com clareza o que te rodeia. O namorado que tanto te ama… A namorada que morre de preocupações com você… As pessoas que te querem tão bem… E eu me incluo nessa. Você é uma garota linda com um coração lindo e nunca mede esforços para ver alguém querido bem. Eu sempre admirei esse seu lado. – Henry abriu um sorriso. – Eu estou fazendo isso porque a minha alma deseja. Nada mais, nada menos. Ela quer te ver bem.




“… A última vez que Kenneth Vogler foi visto, ele estava se divertindo com amigos na casa noturna Click. O estabelecimento ainda não divulgou as imagens”.

A movimentação da loja de Artigos Religiosos no centro de Fox Town era sempre intensa, mas subitamente, os clientes deixaram de vir e se interessar, assim que a foto de Kenneth surgiu na televisão. Abby caminhou até a porta e a encostou delicadamente, sem fazer barulho e mudou a placa de “OPEN” para “CLOSED”. Os olhos pregados na tela luminosa se emocionaram. Finalmente, alguém está noticiando

Morto. Kenneth estava morto. As suas lágrimas já estavam esgotadas e a sua dor adormecida e amortecida pela consciência que o tempo proporcionou para digerir. Justiça ou injustiça, ela implorava por uma resolução. Qualquer coisa. As mãos que seguravam uma na outra se encolheram contra o próprio colo onde um coração agoniado batia. Do lado de fora, a sensação estranha. Abby retornou ao balcão. Nas notícias gerais, uma foto de Annik Volkov, Jullian Blackwood, Nathan Redwyne, Nyra Blackwood e Veronica Velvet estampavam as mais lidas. Veronica Velvet

Abby fechou os olhos e negou com a cabeça. Desconfiada, ela observou os arredores, passando pelas velas coloridas, imagens de santos africanos, guias, pembas, os saquinhos de ervas para defumação. ProteçãoKenneth, onde falhamos com você? O que poderíamos ter feito? Ela tocou os cabelos longos, decorados em dreadlocks entre cores que passeavam do azul ao roxo e fechou os olhos novamente.

Por entre as prateleiras, a imagem feminina se delineou no escuro. O manto negro, de bordas e interior roxos, foi preso na cintura por uma corrente de cor ferrugem, que não tintilava quando se movimentava – propositalmente ressaltando a imagem feminina. Na sua nova religião inventada, a morte, a vida, o tempo, eram todas representações femininas, e ficava evidente no formato de seu corpo, mesmo coberto até que pele não se mostrasse. Blair ergueu o rosto para o alto da prateleira, onde sentiu a energia pulsar dos livros, os mais importantes, em locais mais altos… Provavelmente teria encontrado muitos documentos úteis para aquela viagem, mas não havia mais tempo. Andou sem pressa até o balcão, com os olhos de pedras atrás do capuz; o brilho dourado.  Ficou mais ou menos há cem metros da feiticeira e disse na voz pausada, firme, calma… Havia um certo efeito aéreo, pois não se sabia exatamente de onde soava seu timbre, embora estivesse diante: de trás do ouvido, do outro lado das paredes, ou do teto.  –  Abby… Vamos trocar favores.  – A presença da Mensageira causava um forte efeito de onipresença, que confundia e assustava, sem adotar nenhuma posição ofensiva. Podia sentir a agitação de Abby e havia escutado a notícia.

Um grito rapidamente arrependido. Abby se endireitou com a própria consciência lhe dando um tapa nas costas. Os braços retos e os dedos entendidos pelo patético despreparo. Ela cobriu a boca antes que gritasse novamente. Mensageira?! A mão, vagarosamente, pousou no balcão. Ela pestanejou. Em pessoa? Meu Deus, não me deixe desmaiar agora. Segure-se. Aguente. Não faça o papel de uma idiota.

– Pensamos que estivesse morta. – Disse após pigarrear, recuperando a voz. Sentia-se pressionada de todos os lados como se o ar estivesse comprimido contra o seu corpo. – E qual seria o favor, senhora?

Blair esperou a reação acalmar, continuou em silêncio por alguns minutos. Abaixou lentamente os ombros e segurou a máscara de tecido. Recuou-a da boca, exibindo a pele pálida, e afastou o capuz do rosto, exibindo-se com alguma breve incerteza, mas que logo se dissipou.

– Você… – Esperou a reação dela por mais um tempo. – Não se preocupe. Isso é o que sou. Não irei matá-la por ver meu rosto e estou sozinha. Em outra ocasião enviaria algum servo, mas acredito que minha identidade é segura aqui. – Seus olhos firmes continuavam sobre a feiticeira, o rosto sério. – E aqui seja confiável.

A voz se foi. Não havia mais voz nem cerimônia. Os lábios se desgrudavam até se distanciaram por completo e um “O” enorme se formar em sua boca. Abby já não se culpava pela surpresa. Achou completamente justificável. Sem piscar, ela encarou a atriz. Obviamente, que checou se estava vendo com os seus próprios olhos a dita atriz. Okay. Abby pediu um tempo com as duas mãos e contornou o balcão. Foi até o filtro de água, encheu um copo de plástico e bebeu inteiro de uma vez. Pediu mais um tempo e retornou para detrás do balcão e sentou-se, assentindo com os olhos parados em qualquer ponto nulo no ambiente.

– Você poderia ter feito uma charada antes. Eu não estou preparada. – Disse, sem olhá-la. – Nada faz sentido e… Não faz. – Assentia vagarosamente. – Não deveria fazer, né? – Ela apertou os lábios. – Adoro os seus filmes.

Blair andou na sua direção com cuidado, mostrando que não faria nenhuma movimentação brusca. Ficou sem jeito por dentro, quem a descobria, costumava ter uma reação de surpresa e decepção; por alguma razão, o imaginário coletivo era muito mais horrendo e envolvia uma velha, cicatrizes, tumores… Seu sorriso discreto apenas surgiu quando ouviu sobre seus filmes.

– Obrigada, Abby. Desculpe pelo susto. Eu não poderia simplesmente dizer… Quem eu era… Você precisava ver.  – Fez uma pausa paciente.  – Infelizmente, não posso responder suas dúvidas… Eu vim realmente em busca de algo… E eu queria que me enxergasse como igual, não algo que você não saberia lidar…

– Não estou sabendo lidar. – Abby disse, erguendo os olhos até os claros e puros de Blair Valerius. – Separar em minha cabeça a Mensageira da Blair Valerius, queridinha dos Estados Unidos, namorada do Rhistel da Heathens… Um casal muito fofo, diga-se de passagem. Ah. – Abby ergueu as mãos e as chacoalhou no ar. – Imagino eu que não é a mim que você precisa?

– Eu sei. Muita coisa para processar. – Blair abaixou o rosto e sorriu ao ouvir o nome do namorado, mas mordeu o lábio em seguida e a fitou em seus olhos escuros. A seriedade retornou a sua expressão. – Sim. Leve-me até ele, Saint… Por favor, Abby?

– Claro. – Abby sentiu prontamente e abaixou-se, tateando uma gaveta que ela abriu até encontrar uma chave.

Uma chave de carne, vermelha e seca.

– Por aqui. – Ela disse, abrindo a porta dos fundos.

Havia uma porta à direita para o estoque e nada mais para os olhos humanos. Todavia, a parede ilusória escondia mais duas. Uma delas, dourada e desgastada pelo tempo e falta de polimento. Abby avançou, fechando os olhos por impulso ao passar pela parede. Ela sentiu com pressa, sem arrastar os chinelos no chão como costumava fazer. Com a chave de carne em mãos, ela aproximou da porta. O objeto se contorceu e encaixou-se perfeitamente à fechadura. Ouviu-se um clique e ele caiu novamente à mão da feiticeira. Abby abriu a porta e a paisagem sem sentido lógico apresentou-se em meio à escuridão e tochas.

Humilde como uma vila no Congo deveria ser. O chão de barro seco e desnivelado por pedregulhos estava úmido de vermelho adiante em um ritual de morte e revolta. O corpo de um gorila estava rodeado por flores e imagens que ressaltavam pedidos de perdão pela morte ocorrida pelas mãos de três homens. As suas cabeças decepadas estavam voltadas para o ritual, contemplando o male contra a natureza. Não havia tolerância contra violência praticada contra a natureza. O Sr. Saint a protegia, assim como os seus filhos africanos contando que houvesse harmonia.

Abby engoliu a seco, claramente incomodada. A feiticeira passou ao lado do ritual com presa, quase torcendo o pé no processo e seguiu em direção à uma das casas madeira e tetos de capim traçado. Antes que se aproximasse da porta para abri-la, ele surgiu.

O Sr. Saint era um homem alto e forte, de cabeça raspada e um cavanhaque grisalho denunciando a idade que as marcas de expressão lhe faltavam e não perturbavam a sua beleza. Os olhos calorosos combinavam ao sorriso branco, terno como o coração enorme que possuía. Sem camisa e trajando uma calça simples de cor creme, as cicatrizes em seu peito contavam histórias tanto quanto as guias em seu pescoço, pulseiras e anéis que não combinavam com o cenário pobre. Ele deu uma risada gostosa que Abby retribuiu nervosamente.

– Estive esperando por você. – Ele disse. A sua voz grave e forte como um trovão no céu. – As estrelas… – Ele apontou para o céu. – … Estrelas disseram.

Logo que atravessou o portal, sentiu-se distante de qualquer realidade. Sua mente girou brevemente, perdendo um equilíbrio espiritual para se realocar no mundo protegido pelo feiticeiro. Blair esperou a surpresa dele, mas não se espantou por perceber que ele não via nada não esperado. Os olhos desviaram analisando o local, e ela inspirou antes de relaxar e sorrir brevemente. – Eu acredito que sim. Não foi uma decisão programada minha estar aqui hoje. – Ergueu o olhar brevemente para o céu – Agradeço por me receber e prazer em o conhecer… Pessoalmente dessa vez, Sr. Saint.   – Fez uma breve reverência com a cabeça.

– Tudo está programado de certa forma. – Ele disse, olhando-a com um sorriso selado. – O prazer é meu.

Ele passou por elas e caminhou em direção à rua. Poucos ainda se encontravam fora de suas casas, mas a conversa havia silenciado por completo. Nem a floresta que os margeava falava.

– Que mal terrível. – Sr. Saint disse ao retornar do ritual. – Vamos entrar. Você deixou os espíritos inquietos com as suas intenções e o seu tempo é curto. O trataremos dentro de casa.

– Sr. Saint… – Abby apertou os lábios.

– Fique. Sinto que precisarei de você. – O feiticeiro disse a Abby.

Blair assentiu e o seguiu para dentro da casa, os olhos observando bem aos arredores. Havia muitas coisas por ali que estavam muito longe da sua rotina, e tentava captar e compreender o processo de algumas. Blair mantinha seus olhos em todos os lugares, como sempre.
A loira os esperou dentro em pé quando convidada, e mantinha seus olhos nos dois.

– Parece… Que tem uma ideia do porque estou aqui. – Disse em tom baixo – Incomoda-os? Preciso mesmo de fantasmas e… Enfim…

O Sr. Saint acabou rindo em resposta. Aquele riso gostoso e soltou:

– Palpites. Eu tenho palpites. Alguns. – Sr. Saint disse, indicando a ela o tapete de palha no chão. Ele se sentou em uma cadeira e madeira que rangeu com o seu peso. – Sentimos membros do Gramaire essa semana por Fox Town logo em seguida de um grande… – Ele ergueu as mãos no ar, indicando uma esfera. – … Boom. – Gesticulou a explosão. – A calmaria foi quebrada. Lobos caçadores, o Gramaire é. Poderosos.

– Eu acho que vi Ravenna no centro. – Abby disse e caminhou até o Sr. Saint, apoiando as mãos no encostado da cadeira. – Posso estar enganada. Enfim, já cooperamos com eles em outras ocasiões, mas…

– Mas não é por isso. – Sr. Saint voltou a sorrir. – Qual é a troca? O que vou receber e o que você vai receber? – O feiticeiro se endireitou.

Os cabelos loiros estavam presos em um coque perfeito, Blair mantinha uma postura regrada, assim como seu olhar sempre firme, que aos poucos foram demonstrando que estava em perfeito improviso. Precisava pensar. A história do Gramaire também roubou seu pensamento… Sabia como aqueles magos eram engenhosos. Provavelmente descobriram que a Mensageira havia desaparecido de seus fiéis e encontrado brechas.

– É mais fácil falar sobre o que preciso, não é mesmo? – Sorriu sem jeito – Irei buscar uma parte da alma de minha amiga… Que é como irmã… Na Umbra Negra. Os fantasmas me foram sugeridos… Suicidas… Eu faria tratos com esses para me ajudarem lá embaixo. – Fez uma pausa molhando os lábios – Um Cão Demônio… Também. É o que acreditava que poderia buscar aqui. Fantasmas suicidas não são um problema os encontrar e tratar com eles. Mas… Um Cão… É específico. – Dividia o olhar entre Abby e Saint – Sobre a outra parte… Eu posso oferecer Fetishes… Eu posso oferecer informações… – A maga parecia deslizar dentro do manto quando caminhava até uma outra ponta – Eu não pesquisei o suficiente para saber do que precisam… Ou gostariam. Então, estou aberta.

Abby se afastou do Sr. Saint e se aproximou de um garro de barro, enchendo um copo de madeira e bebendo da água. Ela inspirou profundamente e apoiando as mãos da pia, assim como o quadril.

– Entendi. – Sr. Saint assentiu vagarosamente. – Mas não sou eu quem decido. As palavras foram ouvidas.

O feiticeiro encostou as costas no encosto da cadeira, descansou as mãos sobre as coxas de pernas abertos e fechou os olhos. O seu pescoço amoleceu, fazendo a cabeça pender para baixo, caindo vagarosamente. De súbito, energia.

Abby arquejou, fechando os olhos com força por um instante. Sr. Saint foi erguendo os olhos vagarosamente para Blair. Olhos que não piscavam, rubros e acesos como as chamas de uma fogueira. Uma lança surgiu às suas mãos, assim como uma coroa dourada em sua cabeça. Sr. Saint a bateu com a lança no chão três vezes.

– Abby. – Ele falou, mas com uma voz que não era do mundo dos vivos e ainda mais grossa do que a timbre anterior. Sua boca e língua tomada pelo mesmo rubro dos orbes estatelados. – Aproxime-se, filha.

Prontamente, Abby se sentou sobre as pernas aos pés da cadeira. O Espírito assentiu e se voltou para Blair novamente.

– Em troca… Eu quero um favor e uma informação. O favor ainda acontecerá. A informação é agora. Não desejos Fetishes. Fetishes… Quem irá aceitar, é o meu contato no Mundo Inferior. Um Cão Demônio é caro. Esteja preparada para dar um bom Fetishe em troca. – Ele fez uma pausa. – Temos um acordo?

Blair observou a transição de Sr. Saint com naturalidade. Perguntava-se com quem conversava naquele instante, pensando sobre a proposta. Negociações…

– O favor… – Fitava-o nos olhos de brasas – Preciso de informações sobre ele. Quando, o que ou onde. E se isso está em meu alcance… Ou precisarei buscar em algum local.

– O favor é uma cobrança futura. Provavelmente, em relação a uma missão ou proteção para com os meus filhos. Nada que você não consiga fazer. – Sr. Saint disse com seriedade. – Mas algo que apenas você poderia fazer.

Não era o tipo de trato que faria sem investigar, mas três pensamentos a fizeram mover a cabeça e aceitar de pronto: não tinha tempo, Audrey precisava de ajuda; eles não eram conhecidos por segundas intenções, ou seja, sabia que seria algo a seu alcance; e por último, era algo que ela poderia fazer. Talvez resolvesse muito antes do que imaginado, sem espalhar responsabilidades.

– Certo. Agora… A informação. O que deseja saber?

Sr. Saint assentiu vagarosamente e se entreolhou com Abby:

– Desejo saber como ele morreu. E por que.

Abby arregalou os olhos, tocando-se no colo.

A maga franziu a testa por um segundo, o silêncio perdurou breve, mas por segundos o suficiente para pensar na pergunta e resposta.

– Eu o matei. – Respondeu diretamente, o olhar desviando calmamente de Saint para Abby – Eu não sei o quanto sabem dele, mas Kenneth era da Goetia. Estava no mesmo refúgio que eu, na Ilha Luar do Oceano e tentou tramar contra mim e assassinou um habitante.  Eu… Sinto muito. Não foi algo que eu desejei igualmente. Ele me mataria se eu não o fizesse.

Abby tossiu e abraçou-se. Goetia. Repentinamente, a saudade se envolveu em indignação e ódio.

– É o suficiente. – O Sr. Saint respondeu após um longo período apenas observando os olhos verdes de Blair. – Chamarei o seu mercador.

A mão do Sr. Saint pousou sobre a cabeça de Abby e ele a apertou. Abby suspirou, fechando os olhos aguados com lábios que tornaram o seu rosto.

– Trapos. – A voz de Saint retumbou por todo o ambiente. – Trapos. Negócios. Venha aqui. Negócios muito rentáveis para você. Trapos. – Sr. Saint inspirou. – Isso. Venha. A cliente está presente.

Repentinamente, Abby se levantou e bateu os pés no chão, sapateando-se. Cheiro de carne pobre acompanhou o seu sapatear. O seu rosto se desfigurou levemente, perdendo as pelas expressões. Parecia mais velha e a postura altiva se quebrara para uma curvada. Os dedos reflexionados como se segurassem objetos invisíveis.

– Hah! Que moça bonita! Muito bonita! – Abby, ou Trapos, riu com os olhos tomados uma névoa que não permitia o vislumbre dos seus orbes. – Cabelos de ouro! Muito bonita!

– A moça é a cliente.

– Como chama a moça?

– Você vai chamar de “moça”. – Saint disse, ríspido.

– Moça, moça. Cliente. O que quer? O que precisa? Tenho de tudo, desde as mais belas iguarias às mais terríveis maldições. Hah! – Trapos dançou pelo tapete. – Ah, um corpo. Como amo clientes. Ah, a carne!

Os olhos de Blair ficaram em “Trapo” com certa desconfiança. Espíritos antigos… A Maga o observou em silêncio, e entreabriu os lábios. – Ok… – Molhou os lábios após piscar devagar, voltando a focar-se. – Cão Demônio. O mais forte e hábil que possuir. Tenho um Fetishe poderoso, valor pessoal… Único. Compra…?

– Cão Demônio?! – Trapos se surpreendeu e riu, cacarejando. – Nooossa. A moça não brinca em serviço.

– Se vai descer ao Mundo Inferior, é melhor também pegar alguns óbolos. – Sr. Saint disse. – A moeda do nosso mundo.

– É! Sempre bom, né? Dinheiro. Sabe como é… – Trapos se endireitou. – Bem, deixe-me ver. Eu tenho dois muito leais. Fáceis de controlar. Mansos, sabe. Tenho alguns mais bonitos e tenho o Cerb. Hah! Cerb eu quem fiz. Você é o que, menina? Metamorfa? Violadora de Nomes? Porque ele precisa de alguém que saiba ter pulso e magia. Eu poderia oferecer este, mas ele é caro, hein? Ele tem três cabeças. As três são uteis. Não é de enfeite não. Foi moldado a partir de um Espectro. Estava reservado, mas por uma boa quantia, eu posso vender… Que Fetishe você tem aí?

– Violadora. – Ela respondeu e disse: – Cerb. Se é o mais competente, quero-o. – Não demonstrou seu interesse na voz para não aumentar o preço, mas estava internamente curiosa e animada. Blair afastou a manga do manto da mão direita e mostrou uma adaga Fetishe. O instrumento antigo, tinha muitos símbolos estancados no seu aço no cabo, que até se confundiam em diversas representações religiosas. Sua lâmina era curvada em formato de meia lua, e reluzia com qualquer brilho que a alcançava. – É da Goetia. Poderosa para Rituais. Ela em troca de Cerb e todo óbolos que for possível incluir. – Seu olhar vagou até Saint, confiando que ele mediaria uma negociação justa.

O olhar de cobiça de Trapos foi tão claro quanto Abby não existisse.

– Eu acho que um Fetishe desse porte compraria dois Cães Demônio Espectrais. – Sr. Saint disse.

Travos encarou Sr. Saint com ressentimento.

– Dois! Nunca! Nem tenho dois! São raros e caros. Difíceis de conseguir! Foi moldado pelas mãos do próprio Baran! Troquei por mais de quinze mil óbolos! – Travos fitou Blair com um ar pensativo. – Eu te ofereço então Cerb e Focinho. Focinho é o meu melhor farejador! Ele é pequeno, mas vai encontrar qualquer coisa que você quiser.

– E mais três mil óbolos.

– Dois mil! – Travos jogou as mãos para cima. – Dois e quinhentos…? Por favor, vocês querem me depenar!

– Três mil e trezentos.

– Três mil! Três mil!

– Certo. – Blair agradeceu a Saint com o olhar. Aproximou-se com a adaga na mão e esperou: – Faça sua parte, deixe-me ver os cães… E a Adaga é sua.

– Okay! Okay! – Trapos agitou as mãos. – Onde nos encontramos?

– É preciso da informação? Teste o Focinho e os encontre. – Sr. Saint disse calmamente.

– Ah… É! Vou achar, vou achar. – Trapos assentiu. – Focinho é realmente bom.

– Ótimo. Temos um acordo. – Sr. Saint.

– Quando chegarão? – Trapos perguntou a Blair.

– Em poucas horas iremos concluir o Ritual. – Escondeu o Fetishe embaixo da manga, fazendo-o sumir da própria mão enluvada. – E faremos a troca lá. – Afastou novamente alguns passos. – Até mais, Trapos.

Antes que Trapos também se despedisse, Sr. Saint se levantou e empurrou Abby às costas. No mesmo instante, o seu rosto voltou ao normal. A moça tossiu bastante e correu até a pia, buscando por mais um copo de água.

– Boa sorte. – Sr. Saint disse. – Trapos estará do seu lado enquanto você for útil para ele. Não dê confiança. Pegue os Cães Demônio primeiro e sinta-os seus. A adaga, depois.

– Obrigada pela informação. – Blair buscou o capuz e o vestiu – Não será uma jornada fácil. Mas ficou menos complicada agora. Entrem em contato quando for a hora.

– Sim. – Sr. Saint disse com, finalmente, um sorriso. – Aguarde-nos.

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