Stand My Ground

Categorias:Romance
Wyrm

Stand My Ground


O mesmo sonho…

Ela acordava solitária na imensa cama e quando tentava chamar pelos seus amados, a voz lhe faltava como se lhe fosse privado o dom da fala. Desesperada, ela corria em direção à porta, mas era interceptada por uma poça espessa e negra que escorria do quarto de banho, dominando o chão. Um ser humanoide, que não se revelava homem nem mulher, saía dela e se arrastava, firmando os dedos nodosos no piso com esforço. O seu corpo esquelético se repuxava inteiro para trás, lutando para não retornar de volta ao lodo de onde viera. A sua boca vermelha se abria, e embora fosse rapidamente preenchida de negro, ela não se calava mesmo afogada e quase incompreensível: Eu estou vivo… Eu estou vivo…

Horrorizada, Annik se afastava, mas uma dor incapacitante no pé direito a impedia de andar. A Garou caía sentada no chão, gemendo, buscando ver o pé que latejava, erguendo-o com as duas mãos para olhar a sola onde um corte se abria, úmido e inchado como uma planta carnívora sem dentes. Não havia sangue e o inferior escuro parecia ser a janela para qualquer outro lugar que não fosse o seu próprio corpo. Agoniada pela dor e a visão, a Garou chorava desesperadamente, querendo e receando tocar o ferimento e sentindo o corpo sendo banhado pela possa quente. De súbito, quase acertando o rosto próximo da lupina, saltava do ferimento uma longa mamba-negra. A serpente atingia o chão se contorcendo e se lambuzando de negro. Um corte se abria nela de uma ponta à outra em suas costas e o sangue rubro se misturava com o preto a medida que o seu desespero frente a morte retorcia o seu corpo.

Como nos últimos dias, Annik acordou novamente, mas desperta, sem ferimentos e acompanhada. As mãos ansiosas tatearam delicadamente cada um dos membros de sua Alcateia. Jules, Nate, Nay, Remie. Ela ouvia o próprio coração entre as respirações profundas do sono deles. O enjoo. A Ragabash se ergueu com pressa e correu até o banheiro, debruçou-se sobre o vaso sanitário após erguer a tampa e vomitou todo o alimento do seu estômago até que a ânsia não passasse de uma bile amarelada misturada com saliva. Os seus braços tremiam violentamente e um choro infantil lhe veio aos olhos. Shh… Ela mordia o lábio, calando-se do gemido. Shhh

Os pesadelos não eram novidades. Desde a missão que conseguiram concluir destruindo uma das fábricas da Goetia, ela os tinha ocasionalmente. Um resquício, como uma impressão sensível de uma dor antiga, sempre ficava e o seu pé doía levemente. Ela se sentou no chão, puxando pedaços de papel higiênico para limpar a boca, mas desistindo e erguendo-se para se debruçar na pia para escovar os dentes. O seu corpo tremia inteiramente e a escova escapou das suas mãos duas vezes. Annik suspirou, chorosa, e olhou-se no espelho. Os seus olhos se encontraram com os de Jullian, escorado na porta:

– Oi. – Ele sussurrou.

– Olá, Jules… – Ela sorriu timidamente. – Eu te acordei?

– Não. Eu não estava dormindo.

– Ah… – Annik começou a escovar os dentes.

– É a segunda noite que te vejo se levantando para vomitar. – O Lendário disse, estreitando os olhos de oceano. – Não tem se sentindo bem? A janta não tem caído bem?

– Não… – Ela disse, parando a escova dentro dos lábios. – Não é nada…

O Lendário assentiu vagarosamente, abaixando a cabeça. Annik se curvou fazer bocejos.

– Não precisamos conversar sobre isso? – O Lendário piscou os olhos vagarosamente.

– Não… – Ela respondeu ao se erguer. – É um mal-estar…

Os braços de Jullian se cruzaram em protesto. Ela o mirou com culpa demais para que ele simplesmente aceitasse o seu “não” sem contestá-la. Annik passou por ele e saiu do quarto de banho, caminhando até o cabideiro e pegando o mesmo vestido amarelo do dia anterior para cobrir o seu corpo nu. Não queria preocupá-lo, mas já o sentia assim…

– Não é o que você está pensando… – Annik sussurrou.

– Eu não estou pensando em nada ainda, Annie. Ainda. – Jullian respondeu, franzindo o cenho.

Ela o mirou com dúvida em seus grandes olhos cevados e concordou. – Eu vou… Sair um pouco. – Comentou.

Jullian apenas a contemplou em silêncio…

Não somente queria evitar preocupá-lo como não queria dividir a experiência dos pesadelos terríveis sem saber antes sobre o que eles diziam. Às vezes, não passavam de meros pesadelos tolos ou uma influência da Wyrm que tentava assustá-la. As possibilidades eram inúmeras, mas a Ragabash sentia uma profunda urgência de se compreender. Diversas sensações não explicadas lhe recaiam todos os dias. Vozes, cheiros, dores…

Annik vestiu a sua pele de loba e Percorreu Atalhos para a Penumbra, correndo pelo ambiente Umbral sadio e colorido em direção à Árvore de Dagda. O lugar místico abria os braços e envolvia a todos que precisavam dos seus cuidados, mas o destino da Ragabash era uma Ponte de Lua para a União Lupina. Pensou que se entrasse mais em contato com a sua natureza original naturalmente receberia as respostas que estava buscando. Apesar de a ilha possuir as suas grandes florestas intocadas, a Reserva Florestal era a morada de amigos que possivelmente poderiam ajudá-la, dadas as suas purezas de espírito. Todavia, quando se aproximou da Árvore de Dagda, apenas desejou se sentar aos seus pés e inspirar o ar que a rondava. Annik assumiu a forma hominídea, abraçando as próprias pernas e passou a acompanhar a dança que as folhas faziam com a brisa fria.

It’s all around… Getting stronger, coming closer… Into my world. I can feel that it’s time… For me to face it… Can I take it? – Ela sussurrava a música que estava se criando em sua mente nos últimos dias. – Though this might just be the ending… Of the life I held so dear… But I won’t run, there’s no turning back from here

Annik inspirou, fechando os olhos. O coração estava mais apertado que poderia suportar por muito tempo. Deveria ter falado com Jullian? A sua voz doce e fluída soava cheia de dúvidas…

Stand my ground, I won’t give in… No more denying, I’ve got to face it… Won’t close my eyes… and hide the truth inside… If I don’t make it, someone else will… Stand my ground.

Ela esperava encontrar seres ao redor da Árvore de Dagda qualquer momento, menos aquele que ela viu se aproximando, muito menos quem o acompanhava. Cassian caminhava sem vontade ao lado de Pingo-de-Prata e Annik recebeu dele um sorriso sem ânimo. O Garou estava com um pijama azul marino estampado com âncoras e o sono ruim cobrava o seu preço em forma de olheiras e olhos inchados.

– Eu não esperava ter companhia. – Ele disse enquanto se aproximava.

– A Árvore de Dagda é o socorro de muitos… – Annik disse, erguendo os olhos para as folhas. – Noite ruim?

– Péssima. – Cassian respondeu sem pestanejar.

– Sinto muito, Cass… – Ela encolheu os ombros.

– Você estava cantando…

Ela sorriu seladamente.

– Eu atrapalhei? Estava tão bonito…

– Não. É só… – Um conselho interno… – Ideias que ando tendo. Nada demais. Eu já estava de saída mesmo… – Annik sorriu para o Espírito que se aproximou, fazendo carinho na cabeça de Pingo-de-Prata e ganhando uma lambida em seu rosto. – Eu vou até a reserva… Correr. Correr me ajuda a pensar sempre. Eu estou precisando…

– Eu posso ir também?

Não. Ela quis dizer, mas não disse. Um impulso de cortesia e educação contornou a sua vontade de ficar sozinha. Annik se ergueu e assentiu para ele. Cassian concordou e acompanhou o desenho que a Ragabash fazia no ar, trazendo para a vida o portão da sua Ponte de Lua, prateado e elegante, semelhante à entrada de um majestoso palácio. Os dois percorreram a ponte já correndo em formas lupinas e aterrissaram no Coração da União Lupina. Eles uivaram apresentações enquanto Raul “Cicatriz” os observava. Ele permitiu a entrada e os dois Garou sumiram na mata.

Correram pelo verde sem destino traçado, seguindo apenas para sentir o beijo da liberdade em forma de vento em seus rostos. Pingo-de-Prata os acompanhava e por um momento Annik estranhou a presença do Espírito companheiro de Nyra, mas não acreditou ser um mau agouro. Os três se encontraram com a Alcateia dos Buscadores e a Ragabash apresentou Cassian a eles, assim como Pingo-de-Prata. Eles brincaram e interagiram por horas. O Sol estava despontando no horizonte e Annik ainda não se sentia cansada. Ela e Cassian foram se sentar às margens do rio que preenchia a lagoa que um dia fora a casa de Ladirus. Os dedos dos pés da Ragabash afagaram a terra úmida, sentindo a presença de Gaia muito próxima…

– O que aconteceu contigo, para você ter buscado pela ajuda de Gaia, hein? – Cassian lhe perguntou.

Annik o olhou. Conhecia o rosto belo dele de videoclipes e revistas, apesar de estar mais amadurecido e masculino do que quando vivenciara a antiga boyband. Cassian possuía olhos verdes uniformes que lhe soavam sempre curiosos e o sobrenatural mágico neles era nítido como a sua pupila negra. Os cabelos claros estranhavam bagunçados e jogados para trás. Annik o admirou em silêncio. Não sabia se queria desabafar com alguém que mal conhecia…

– Bom, eu fui descoberto fazendo algo terrível e estou com um problemão para resolver agora. Provavelmente, eu estou bem fodido. – Cassian declarou, assentindo para si mesmo. – Bem fodido.

Inspirando profundamente, Annik reuniu alguma coragem e sussurrou. – Eu estou tendo pesadelos horríveis desde de uma missão. Eu estou tentando me recordar exatamente o que aconteceu, mas não me lembro. – Comentou, timidamente. – Eu guardo tudo na minha cabeça, mas dessa vez parece que sumiu…

– Sei. – Cassian a fitou, franzindo o cenho. – Quer ajuda?

Annik se endireitou.

– Eu posso te levar até lá e você ver o que aconteceu pessoalmente… – Cassian sorriu com ar de travessura. – Tempo.

– Oh.

– Quer? – Ele franziu o cenho.

– Eu… – Ela receou por um instante. – … Quero.

– Estamos muito longe de onde ocorreu?

– Um pouco…

– Concentre-se na memória que sobrou para você e no lugar, tudo o que você conseguir reunir… – Cassian a tocou na cabeça. – Leve-se até lá.

E me leve junto. Cassian ouviu perfeitamente a voz que não conhecia, mas sua mão já não obedecia a sua ordem. Ele ofegou e tentou se mexer, mas estava paralisado. Os olhos se fecharam e já não se abriram onde estava. Sangue, feridos, Wyrm. Nyra, Annik, Blair, Remi, Nathan… Sr. Drawn…? Cassian arregalou os olhos e fitou Annik em seu lado. Tentou dizer: precisamos ir embora, mas os seus lábios sequer se mexeram. Nada se movia em seu corpo, apenas os seus olhos. Annik começava a proclamar a sua prece e, por um momento, eles puderem enxergar perfeitamente a imagem de um Hispo enorme e prateado se confundir com o corpo da Garou, falando juntamente com ela.

Cassian conseguiu se jogar para trás, cortando o Efeito abruptamente e sofrendo de uma terrível dor de cabeça, um soco forte do Paradoxo, ao fazê-lo. Deitado, ele observou Annik se levantando, ouvindo também a respiração acelerada da Garou. Quem eu levei? O Garou tentou se erguer, mas sentiu-se sem forças. QUEM EU LEVEI?!

– É o Pai… – Annik sussurrou. – O Pai está em mim. – Havia confusão em sua voz. – Não pode ser… – Annik sussurrou. – Não faz sentido

“Blair!”, Cassian gritou desesperadamente, buscando pela mente da Maga, “Blair! Eu acabei de fazer uma coisa…!”. Cassian mordeu o lábio e acompanhou a imagem do lobo completamente prateado, de intensos oceanos de oceano, transpassando a Película.

– Jullian. – Sussurrou antes de desmaiar.

Author: